Mapeamento da desterritorialização etnolinguística no Sudeste e Leste do Brasil durante as primeiras invasões europeias

1500-1700 EC

 

RESUMO

Análise cartográfica do processo de desterritorialização etnolinguística de povos originários do leste de Abya Yala, e consequente territorialização de povos europeus invasores. A acelerada diminuição da diversidade linguística do planeta é marcante na globalização. Esse processo se torna evidente nas Américas a partir do final do século XV, com as invasões europeias. Mediante análises cartográficas e antropogeográficas busca-se entender qual era a distribuição geográfica das áreas etnolinguísticas, por meio das quais é possível apontar propostas de territórios e regiões etnolinguísticas no Sudeste e Leste do Brasil, nos dois primeiros séculos de invasão eurocidental. O presente texto apresenta proposta de mapeamento desses espaços a partir de fontes qualitativas ineditamente mapeadas, e aponta locais de onde partiu sua desfiguração. As conclusões são de que havia diversas porções desse espaço que poderiam ser consideradas hotspots etnolinguísticos, mas que foram eliminados por meio do processo de desorganização territorial ocasionado a partir do século XVI. Isso fortaleceu o que hoje é identificado como globalização.

 

INTRODUÇÃO

A expansão do capitalismo mundial consolidou-se como um dos mais fortes modificadores de paisagens, territórios e regiões geográficas. O processo de globalização ou mundialização (Raffestin, 1993) vem amplificando diversos fenômenos homogeneizantes, através dos quais estão sendo eliminadas culturas, línguas, espécies (vegetais e animais) e identidades ancestrais em favor de uma cosmologia (ou racionalidade) homogênea, europeizada (Ratzel, 1912: 191).

Em alguns meios, é propagada uma imagem idílica da globalização como fomentadora de um mundo sem fronteiras, que torna todos "cidadãos do mundo". Entrementes, na realidade, ocorre ao contrário, ela está eliminando a diversidade biológica e cultural existente. Sobre isto, Clark (2004) comenta que a cada mês duas línguas desaparecem no planeta. Isto levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a declarar o ano de 2019, e a década de 2020, como das línguas indígenas. A expansão de um mundo globalizado, homogeneizado, elimina sua heterogeneidade, extinguindo espécies biológicas e sistemas culturais. A resistência indígena e de outras culturas locais ou marginalizadas, não corresponde apenas a uma reação visando à sobrevivência de um grupo étnico específico, mas uma resistência contra a força de homogeneização promovida pela globalização.

Nesse sentido, questionamos: qual era a distribuição geográfica das línguas e povos indígenas no Sudeste e Leste do Brasil (atuais estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Sergipe) no momento das primeiras invasões europeias? O processo de desterritorialização etnolinguística dos povos originários no Brasil, foi iniciado após as primeiras invasões de europeus sobre seus territórios no século XVI, e continua até os dias de hoje. Trabalhos que buscaram mapear a diversidade e extensão das áreas etnolinguísticas originárias do Brasil (Loukotka, 1967; Nimuendaju, 2002; Kaufman, 2007) apresentam algumas lacunas de locais não mapeados por insuficiência de dados. Isso deixa vácuos na identificação da verdadeira extensão da área ocupada e do território dominado por determinada família linguística. Para superar essa deficiência, complementamo-las com o mapeamento inédito de informações qualitativas constantes de outras bases.

Com o objetivo de melhor entender como se deu o início dessa desterritorialização, nos apoiamos em análises antropogeográficas (Ratzel, 1909) com uso da cartografia. O olhar crítico das análises neste texto é inspirado na proposta da decolonização (Quijano, 2005), no sentido de repensar o processo de formação do território brasileiro sobre a multiterritorialidade de Abya Yala. É necessário que a história indígena seja mais bem contada nos livros didáticos, conforme prevê a Lei 11.645/08. Narrativas cartográficas auxiliam esse entendimento e pode embasar movimentos de emergência étnica e etnoterritoriais, bem como trazer à luz maiores evidências do passado colonial brasileiro.

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Mapa 1 - Áreas etnolinguísticas no leste-sudeste do Brasil por volta de 1500 EC. Autor: DOS SANTOS, Rodrigo Martins (2021).

Mapa 1 - Áreas etnolinguísticas no leste-sudeste do Brasil por volta de 1500 EC. Autor: DOS SANTOS, Rodrigo Martins (2021).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após esta análise preliminar, é possível afirmar que a diversidade étnica e linguística foi uma das principais características do Sudeste e Leste do atual Brasil. Havia nesse espaço, durante os primeiros dois séculos das invasões europeias, 265 etnias/povos indígenas, pelo menos.

Podemos dizer que havia duas macrorregiões etnolinguísticas: uma à oeste do São Francisco, dominada por povos de língua Jê; e outra à leste, com alta diversidade etnolinguística, possivelmente constituída pelos descendentes dos Antigos Brasileiros do Leste, os primeiros seres humanos que povoaram essa porção do planeta, falantes de línguas Puri, Borun, Maxakali, Kamakã e diversas outras. Eles compartilharam a porção norte dessa macrorregião com povos de língua Kariri, e o litoral e porções do São Francisco com povos de língua Tupi-Gurani. Também é notável a grande presença de zonas de contato etnolinguístico nessa macrorregião, sinalizando que havia intenso intercâmbio cultural ou disputa territorial no momento das primeiras invasões europeias.

Por fim, indubitavelmente, podemos considerar que havia, nessa porção do planeta, diversos hotspots etnolinguísticos. Estes, lamentavelmente, foram sendo eliminados, gradativamente, por meio do violento processo de desorganização territorial, movido, a partir do século XVI, pelos invasores eurocidentais. Este processo de desterritorialização etnolinguística fortaleceu o fenômeno que hoje é identificado como globalização. Reconhecer essa violência territorial e cultural sofrida pelos povos originários dos invasores europeus é uma premissa para a decolonização.

De resto, o presente texto abre para outras possibilidades de investigação, por exemplo: como apresentar territórios etnolinguísticos em livros didáticos? Qual a importância disso? É possível utilizar esse instrumento como forma de subsídio na autodeterminação territorial de povos originários e emergentes? Ou para a conscientização da população envoltória? Quais foram os territórios que sucederam a esta territorialidade originária? É possível construir análises semelhantes para a formação de territórios ou regiões culturais caipiras, sertanejas, caiçaras, quilombolas ou de outras comunidades tradicionais? Existe uma correlação entre zonas de maior diversidade etnolinguística com as de maior biodiversidade? Enfim, estas questões ficarão para outras investigações.

 

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Clique aqui para acessar o artigo publicado na edição 53 - 2021 da CONFINS - Revue Franco-Brésilienne de Géographie. DOI https://doi.org/10.4000/confins.42944. ISSN 1958-9212.

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