antes e após as invasões europeias
Este capítulo é uma contribuição ao entendimento da localização
geográfica dos territórios indígenas antes, durante e após as invasões
européias[1],
sobretudo no século XVIII, na região onde hoje é chamada de Estado de Goiás.
Mapear territórios no tempo é uma terefa com pouca precisão, especialmente
em se tratando dos povos indígenas, devido à inexistência de um Estado
centralizado que registrasse e controlasse o tráfego de pessoas. Ademais, o
conceito de território na cosmovisão de muitos povos originários é bem mais
amplo do que o utilizado nas esferas estatais modernas. Não há fronteiras
definidas, os grupamentos humanos se movimentam pelo espaço independentemente
de já haver ali outra etnia, pois entendem o solo como um bem inapropriável (MARTINS
DOS SANTOS, 2021a).
Martius (1867a) foi pioneiro nesse tipo de mapeamento, sendo autor
do primeiro mapa etnolinguístico do Brasil, que agrupa as diversas famílias linguísticas
indígenas conhecidas à época.[2] Ratzel
(1912 [1891], p. 482; 1909 [1882], p. 28), por sua vez, apresenta a primeira
proposta metodológica para o mapeamento de áreas
culturais, onde a língua é um dos principais elementos que participam da
construção da identidade étnica dos grupos sociais. Esses estudos foram aprimorados
por Carl Sauer e Franz Boas, influenciando os mapas de John Mason, Curt
Nimuendaju (2002 [1944]) e Eduardo Galvão, sendo aperfeiçoados por Loukotka
(1967) e Kaufman (2007).
O presente texto é focado nos
limites do atual Estado de Goiás, a partir de estudos antropogeográficos sobre
o Planalto Central Brasileiro (cf. MARTINS DOS SANTOS, 2013). Outrossim, apresenta
uma proposta do remodelamento territorial indígena com base no conceito da desterritorialização etnolinguística, que
vem sendo aplicado em estudos similares no leste e sudeste do Brasil (MARTINS
DOS SANTOS, 2021b).
A desterritorialização
etnolinguística resulta do fenômeno da globalização (RAFFESTIN, 1993 [1980]),
que amplifica o processo de homogeneização cultural. Elimina idiomas e
identidades ancestrais em favor de uma racionalidade (ou cosmologia) homogênea
e europeizada, conduzida pelo colonizador (RATZEL, 1912, p. 191). Por isso,
faz-se necessário descolonizá-la (QUIJANO, 2005). Ou seja, repensar o processo
de formação do território brasileiro sobre a multiterritorialidade de Abya
Yala[3]
como uma invasão (ACOSTA, 2016).
O conceito de território aqui adotado é o de um espaço de poder, mais ou menos delimitado, que possui um sujeito dominante (RAFFESTIN, 1993, p. 143). Sobre um mesmo território, sujeitos equivalentes dificilmente sobrepõem domínios. Dessa forma, território etnolinguístico é o espaço de domínio de determinada família linguística étnica[4]. O sujeito, portanto, é etnolinguístico. Neste sentido, é a porção de terra onde, provavelmente, o idioma das etnias, ali residentes em determinada época, constituía uma mesma família.
O tronco Macro-Jê não será abordado, visto a falta de consenso demonstrativo (RODRIGUES, 2013). Diferentemente dos troncos Tupi e Indoeuropeu, que possuem paleolínguas mátrias, diversificadas no tempo, as línguas do Brasil central devem ter-se originado de distintas pátrias, por mini-paleogrupos, milênios depois rodeados por nações Tupi.
(...)
Mapa 1. Territórios etnolinguísticas na região atualmente chamada de Estado de Goiás, início do séc. XVIII.
Considerações Finais
Como visto, os povos originários de
Goiás tiveram seu território ancestral esbulhado por invasores, capitaneados
pela estratégia colonial europeia. Inicialmente utilizando antigos caminhos
indígenas, é provável que as frentes invasoras tenham buscado, em seguida, as
regiões menos povoadas, pois acompanharam, em certa medida, as fronteiras
territoriais desses povos. Essa estratégia evitava o confronto direto com povos
no percurso, nas zonas de maior densidade populacional. Isto, porém, deve ter
intensificado o processo de divisão étnica de alguns povos, como os falantes da
língua Akwen nas distintas
etnias A’uwe-Xavante, Akwê-Xerente e Xakriabá.
Este
capítulo buscou apresentar uma breve introdução à questão territorial indígena
em Goiás. No presente livro, o leitor poderá obter informações mais
aprofundadas, nos capítulos seguintes, sobre alguns dos povos aqui retratados.
A
causa indígena não é apenas dos povos indígenas, mas de todo cidadão que deseja
paz e justiça. Os povos originários de Goiás podem ser enquadrados entre
aqueles que mais sofreram genocídio, epistemicídio e esbulho territorial dentre
todos do planeta. Para amenizar isso, faz-se necessário reconhecer seu passado
e seu presente e lutar pelos direitos territoriais e culturais de seus
descendentes, garantidos na Constituição Federal.
As
pressões contra esses direitos continuam sendo emanandas dos mesmos grileiros e
latifundiários, herdeiros ideológicos dos bandeirantes. Junto a eles, grupos
neopetencostais, sucessores dos missionários cristãos, formam a conhecida
bancada BBB (boi, bala, bíblia). Essa retrógrada força política, econômica e
social que obstrui a retomada territorial dos povos originários, na tentativa
de reduzir ainda mais a diversidade étnica e linguística do país.
[1] As invasões europeias no Brasil configuram-se num complexo de
eventos históricos promovido por cortes europeias, sobretudo de Portugal e
Espanha, a partir do final do século XV, sob a tutela da Igreja Católica, e
secundariamente por França, Holanda e Inglaterra, dando origem às bases da formação
do povo luso-brasileiro e, posteriormente,
o Estado Brasileiro (cf. RIBEIRO, 2011).
[2] Igualmente introduziu o termo “Gê” para denominar a família
linguística atualmente conhecida como Jê. Tal escolha é baseada no fato de que muitos povos dessa
família utilizavam esse termo para se autodenominar, como Apinagez, Crangez,
Kempokatagê, Piocobjê, Kemkatejé, Kanakatejé, Krengez, entre outros. A família
linguística Jê abrange a maioria dos povos que habitavam os cerrados de Goiás,
São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Maranhão e Piauí durante as invasões europeias.
Conjuntamente, o referido mapa apresenta a primeira proposta de rota de migração de povos
Tupi-Guarani da Amazônia para o litoral brasileiro.
[3] Abya Yala é como o
continente americano é chamado pelos povos nativos, conforme afirmado na “Declaración de Kito” (2004), da II Cumbre Continental de los Pueblos y
Nacionalidades Indígenas de Abya Yala.
[4] O conceito de família
linguística surgiu da necessidade de se agrupar as línguas em função de uma
origem comum, uma mesma protolíngua. A relação de diversas famílias com uma protolíngua principal mais antiga é chamada de tronco linguístico. Os dialetos, por sua vez, seriam as
pequenas variações dentro de uma mesma língua. A importância do idioma para o
agrupamento das etnias se dá em virtude de que é um critério mais seguro de
classificação cultural do que outros traços étnicos (CAMARA Jr., 1977, p.
140-142).
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