Territórios indígenas em Goiás

antes e após as invasões europeias


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Capítulo de Rodrigo Martins dos Santos publicado entre as páginas 27 e 48 da obra BICALHO, Poliene; MOURA, Marlene Ossami de; INY-KARAJÁ, Vanessa Hãtxu. (Org.). Povos Originários. MENDONÇA; JAIME (Coord.). Coleção Goiás +300 - Reflexão e Ressignificação, v. 6. Goiânia: Goiás+300, 2023.


Este capítulo é uma contribuição ao entendimento da localização geográfica dos territórios indígenas antes, durante e após as invasões européias[1], sobretudo no século XVIII, na região onde hoje é chamada de Estado de Goiás.

Mapear territórios no tempo é uma terefa com pouca precisão, especialmente em se tratando dos povos indígenas, devido à inexistência de um Estado centralizado que registrasse e controlasse o tráfego de pessoas. Ademais, o conceito de território na cosmovisão de muitos povos originários é bem mais amplo do que o utilizado nas esferas estatais modernas. Não há fronteiras definidas, os grupamentos humanos se movimentam pelo espaço independentemente de já haver ali outra etnia, pois entendem o solo como um bem inapropriável (MARTINS DOS SANTOS, 2021a).

Martius (1867a) foi pioneiro nesse tipo de mapeamento, sendo autor do primeiro mapa etnolinguístico do Brasil, que agrupa as diversas famílias linguísticas indígenas conhecidas à época.[2] Ratzel (1912 [1891], p. 482; 1909 [1882], p. 28), por sua vez, apresenta a primeira proposta metodológica para o mapeamento de áreas culturais, onde a língua é um dos principais elementos que participam da construção da identidade étnica dos grupos sociais. Esses estudos foram aprimorados por Carl Sauer e Franz Boas, influenciando os mapas de John Mason, Curt Nimuendaju (2002 [1944]) e Eduardo Galvão, sendo aperfeiçoados por Loukotka (1967) e Kaufman (2007).

            O presente texto é focado nos limites do atual Estado de Goiás, a partir de estudos antropogeográficos sobre o Planalto Central Brasileiro (cf. MARTINS DOS SANTOS, 2013). Outrossim, apresenta uma proposta do remodelamento territorial indígena com base no conceito da desterritorialização etnolinguística, que vem sendo aplicado em estudos similares no leste e sudeste do Brasil (MARTINS DOS SANTOS, 2021b).

            A desterritorialização etnolinguística resulta do fenômeno da globalização (RAFFESTIN, 1993 [1980]), que amplifica o processo de homogeneização cultural. Elimina idiomas e identidades ancestrais em favor de uma racionalidade (ou cosmologia) homogênea e europeizada, conduzida pelo colonizador (RATZEL, 1912, p. 191). Por isso, faz-se necessário descolonizá-la (QUIJANO, 2005). Ou seja, repensar o processo de formação do território brasileiro sobre a multiterritorialidade de Abya Yala[3] como uma invasão (ACOSTA, 2016).

            O conceito de território aqui adotado é o de um espaço de poder, mais ou menos delimitado, que possui um sujeito dominante (RAFFESTIN, 1993, p. 143). Sobre um mesmo território, sujeitos equivalentes dificilmente sobrepõem domínios. Dessa forma, território etnolinguístico é o espaço de domínio de determinada família linguística étnica[4]. O sujeito, portanto, é etnolinguístico. Neste sentido, é a porção de terra onde, provavelmente, o idioma das etnias, ali residentes em determinada época, constituía uma mesma família.

    O tronco Macro-Jê não será abordado, visto a falta de consenso demonstrativo (RODRIGUES, 2013). Diferentemente dos troncos Tupi e Indoeuropeu, que possuem paleolínguas mátrias, diversificadas no tempo, as línguas do Brasil central devem ter-se originado de distintas pátrias, por mini-paleogrupos, milênios depois rodeados por nações Tupi.

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 Mapa 1. Territórios etnolinguísticas na região atualmente chamada de Estado de Goiás, início do séc. XVIII.

Cartografia: Rodrigo Martins dos Santos, 2023.

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Mapa 2. Frentes da invasão europeia sobre territórios indígenas em Goiás ao longo do século XVIII.
Cartografia: Rodrigo Martins dos Santos, 2023.

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Considerações Finais

 

            Como visto, os povos originários de Goiás tiveram seu território ancestral esbulhado por invasores, capitaneados pela estratégia colonial europeia. Inicialmente utilizando antigos caminhos indígenas, é provável que as frentes invasoras tenham buscado, em seguida, as regiões menos povoadas, pois acompanharam, em certa medida, as fronteiras territoriais desses povos. Essa estratégia evitava o confronto direto com povos no percurso, nas zonas de maior densidade populacional. Isto, porém, deve ter intensificado o processo de divisão étnica de alguns povos, como os falantes da língua Akwen nas distintas etnias A’uwe-Xavante, Akwê-Xerente e Xakriabá.

            Este capítulo buscou apresentar uma breve introdução à questão territorial indígena em Goiás. No presente livro, o leitor poderá obter informações mais aprofundadas, nos capítulos seguintes, sobre alguns dos povos aqui retratados.

            A causa indígena não é apenas dos povos indígenas, mas de todo cidadão que deseja paz e justiça. Os povos originários de Goiás podem ser enquadrados entre aqueles que mais sofreram genocídio, epistemicídio e esbulho territorial dentre todos do planeta. Para amenizar isso, faz-se necessário reconhecer seu passado e seu presente e lutar pelos direitos territoriais e culturais de seus descendentes, garantidos na Constituição Federal.

            As pressões contra esses direitos continuam sendo emanandas dos mesmos grileiros e latifundiários, herdeiros ideológicos dos bandeirantes. Junto a eles, grupos neopetencostais, sucessores dos missionários cristãos, formam a conhecida bancada BBB (boi, bala, bíblia). Essa retrógrada força política, econômica e social que obstrui a retomada territorial dos povos originários, na tentativa de reduzir ainda mais a diversidade étnica e linguística do país.



[1] As invasões europeias no Brasil configuram-se num complexo de eventos históricos promovido por cortes europeias, sobretudo de Portugal e Espanha, a partir do final do século XV, sob a tutela da Igreja Católica, e secundariamente por França, Holanda e Inglaterra, dando origem às bases da formação do povo luso-brasileiro e, posteriormente, o Estado Brasileiro (cf. RIBEIRO, 2011).

[2] Igualmente introduziu o termo “Gê” para denominar a família linguística atualmente conhecida como Jê. Tal escolha é baseada no fato de que muitos povos dessa família utilizavam esse termo para se autodenominar, como Apinagez, Crangez, Kempokatagê, Piocobjê, Kemkatejé, Kanakatejé, Krengez, entre outros. A família linguística Jê abrange a maioria dos povos que habitavam os cerrados de Goiás, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Maranhão e Piauí durante as invasões europeias. Conjuntamente, o referido mapa apresenta a primeira proposta de rota de migração de povos Tupi-Guarani da Amazônia para o litoral brasileiro.

[3] Abya Yala é como o continente americano é chamado pelos povos nativos, conforme afirmado na “Declaración de Kito” (2004), da II Cumbre Continental de los Pueblos y Nacionalidades Indígenas de Abya Yala.

[4] O conceito de família linguística surgiu da necessidade de se agrupar as línguas em função de uma origem comum, uma mesma protolíngua. A relação de diversas famílias com uma protolíngua principal mais antiga é chamada de tronco linguístico. Os dialetos, por sua vez, seriam as pequenas variações dentro de uma mesma língua. A importância do idioma para o agrupamento das etnias se dá em virtude de que é um critério mais seguro de classificação cultural do que outros traços étnicos (CAMARA Jr., 1977, p. 140-142).


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