O DRAMA OCULTO DA ALMA BRASILEIRA



Roberto Gambini¹, cientista social e psicanalista, apresenta uma reflexão sobre o que é o Brasil a partir de uma visão da psicanálise. Olha o Brasil como uma pessoa com consciência. Para isso, remete à história da colonização do país, e às visões de mundo dos personagens que participaram dela.

Trás o debate da dualidade, dos opostos: a mente e o coração; o intelecto e a alma; lógica e imaginação; criatividade e compaixão; no que ele chama de “o drama oculto da alma brasileira”. Vê a alma como a substância mais íntima e profunda. A alma brasileira é o que nos une como tal.

Utiliza o Zé Ninguém de Darcy Ribeiro como a proto-célula do Povo Brasileiro, um mestiço de homem-branco com uma mulher-índia. Um filho bastardo, abandonado pelo pai e, portanto, não conheceu suas raízes européias. E com uma mãe vencida, que não era aceita em seu povo e vivia rondando a igreja, onde fora batizada.

Gambini nos faz refletir sobre as nossas origens, como brasileiro. Apresenta uma visão antagônica entre o nativo indígena e o colonizador europeu. Seu posicionamento é extremado, trazendo apenas as negatividades do colonizador europeu, com sua religiosidade preconceituosa de um lado e as positividades do nativo indígena, com sua pureza de bom selvagem. Enaltece o desapego material do índio e repele o tecnologismo materialista do branco.

Durante muitos anos grande parte dos comentários que vemos é enaltecendo o lado europeu, visto como trabalhador, produtivo; e a redução do lado indígena, visto como preguiçoso, e vadio. Gambini muda o peso destas medidas, pendendo para os lados opostos. Mas continua a ser desdenhado um desses lados. Isto pode gerar desconforto, apesar de despertar, também, um sentimento de resgate e correção do erro histórico.

Aliás, ao final da apresentação, faz uma chamada para que nós, brasileiros, deixemos de negar a nossa ancestralidade indígena, de nossas tataravós, e aproveitar que somos multigenéticos para sermos também, multiculturais. Mas como ser multiculturais se continuamos a negar, e reduzir, o outro lado de nossa cultura? Será que a solução para fortalecer nosso lado indígena é reduzindo o lado europeu? Será que o melhor não seria então reconhecermos tanto as mazelas quanto as virtudes de ambos os lados?

O que Darcy Ribeiro² faz em seu livro o Povo Brasileiro não é só ver o lado negativo do europeu e o positivo do indígena. É reconhecer, inclusive do negro, o que houve de contribuição à formação de nosso pensamento, seja isso bom ou ruim.

Acredito que só quando vencermos o preconceito de nossas origens, européias, africanas e ameríndias, vamos crescer em paz, com nossos parentes europeus, africanos e índios. Aliás, em paz inclusive com outros povos d’além mar, como os árabes, indianos e asiáticos.

Não basta condenar nossos antepassados portugueses para confortar nosso lado indígena, pois ainda teremos amargura na matriz branca, e a paz não virá. Temos que evoluir para além da dualidade, e compreender que somos um, somos o todo. Filhos do mesmo Planeta, do mesmo Universo, da mesma Natureza, do mesmo Criador.

__________
¹GAMBINI, Roberto. [aula-magna] 09 Mar. 2008, Brasília (Especialização em Indigenismo e Desenvolvimento Sustentável, Programa de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília). O drama oculto da alma brasileira.
²RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Indigenismo e Sustentabilidade


A abertura do curso de ‘Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a povos e terras indígenas’ oferecido pela Universidade de Brasília (UnB) através de seu Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS), foi uma pequena amostra do que será este curso, uma proposta inovadora na pós-graduação brasileira. Que iniciou com 14 mestrandos indígenas (13 com cotas) e 12 não-indígenas.

Cerimônias religiosas, visões de mundo culturalmente diferenciadas, aulas densas de conteúdo conceitual, fizeram parte dessa primeira experiência. Estas atividades foram proferidas ou celebradas por personalidades das mais diversas, como acadêmicos experimentados, profissionais experientes, lideranças históricas e sacerdotes.

Os representantes das instituições organizadoras e parceiras externaram o orgulho e expectativa na realização deste curso, que deverá formar pessoal qualificado para atuar conjuntamente com as questões indígena e ambiental, no seio da sociedade, seja ela indígena ou não indígena, pois haverá tanto formandos como formadores de ambas as origens étnicas.

As exposições e posicionamentos foram bem diversos, alguns, mais acadêmicos, olhavam a questão como um objeto de estudo científico, onde a maior necessidade é o seu entendimento; outros mais técnicos, viam como um problema de Estado, solvível através de regulamentações legais e reforma burocrática; havia ainda visões mais pragmáticas, cujos objetivos eram a execução de projetos específicos. Mas um posicionamento era unânime, que a questão indígena e o indigenismo é real e necessita de atenção, necessita de ser pensado, incorporado e praticado. Além disto, ficou claro em todos os posicionamentos e pronunciações que a questão ambiental está arraigada na indígena, é impossível indissociar uma coisa da outra. São complementares e assessórias.

A apresentação cultural mítica do povo Bakairi (Auití) ‘A Árvore da Vida’ e a ‘Cerimônia Espiritual Imemorial Yanomami’ possibilitaram uma pertinente saída dos modelos acadêmicos tradicionais de exposição-debate, comumente presente nos eventos de abertura de cursos de pós-graduação. Este contato com a mística indígena religou os participantes do curso ao inexplicável, a Deus. Inclusive os estudantes e professores passaram a realizar certas ‘cerimônias’ para descontração e contato com o sagrado, através da música, da dança e da meditação, utilizando simbolismos e citações que iam do indígena, caboclo, afro, até elementos greco-romanos, cristãos e orientais. Manifestando, portanto, o verdadeiro sentido da holística, que vai além da transdisciplinaridade acadêmica, mas envolve todas as ciências, filosofias, artes e crenças.

A mesa de abertura ‘A Alma do Mundo’ formada pelo educador e antropólogo Carlos Brandão e pelo escritor yanomami Davi Kopenawa proporcionou aos ouvintes uma reflexão sobre os propósitos das escolhas. O papel das pessoas que lá estavam. Por que estavam lá? A reflexão de que um outro mundo pode ser possível, com respeito à diversidade natural e cultural do planeta. A importância das diversas formas de conhecimento.

Ailton Krenak, histórica liderança indígena brasileira, explanou sobre ‘Gestão de Territórios Indígenas, Governança Local e Regional’ onde defendeu o “direito à autonomia e soberania dos povos tribais sobre o seu território tradicional”. Ele defendeu, dentre outros pontos, que os índios possam usar instrumentos tecnológicos e geográficos, interagindo de igual para igual com o público externo. Também criticou o fato de que há municípios cuja população indígena é maioria, no entanto, não participam da vida política da cidade, e propôs: “por que as Terras Indígenas não recebem status igualitários como unidade de planejamento nacional, ou Unidade da Federação, como os municípios?”

O tema ‘Indigenismo e Territorialidade’ foi o tema central da exposição do antropólogo João Pacheco de Oliveira, interessado em “passar a história a limpo” sobre o papel do índio na formação do Brasil. Disse que a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) serviu para pacificar os ataques entre indígenas e não indígenas, protegendo ambos, mas também serviu para a expansão econômica sobre as terras tradicionais dos índios. Também colocou que a criação de terras indígenas sempre foi um processo doloroso, muitas lideranças, intelectuais ímpares e únicos, são assassinados, destruindo a memória e conhecimento de um povo, registrar essa luta fortalecerá a defesa e valorização desse patrimônio.
Os antopólogos Stephen Baines, Cristhian Teófilo e Tonico Guarani abordaram o tema ‘Antropólogos e Indigenismo no Brasil’, onde, dentre outros pontos, criticaram o fato de que a antropologia, ciência da observação, registro e análise das diferentes formas de ver o mundo, precisa aprender a ouvir novamente, “estão falando mais do que ouvindo e para si mesmo”, para seu grupo, sem externar para o público geral suas idéias.

O sociólogo Donald Sawyer abordou o tema ‘Desenvolvimento Sustentável e Territórios Indígenas’ levantando diversos questionamentos para reflexão, como o fato de que para ruralistas laudos antropológicos que apontam a ocorrência de índios em suas fazendas estão distorcendo a realidade, mas não teria o indígena ocupado todo o território brasileiro? O Brasil defende a responsabilidade histórica dos países que emitiram gases de efeito estufa, mas não existe uma responsabilidade histórica do Brasil perante índios e negros? Uso de plantas medicinais a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) proíbe. Interesse das indústrias farmacêuticas?  Poderia o indígena levantar a bandeira do uso de plantas medicinais? Seria interessante para políticas ambientais? Como resolver a extração de madeira e minérios em terras indígenas?

‘Diálogos interculturais: Sustentabilidade e Espiritualidade’ foi proferida por Marcos Terena, histórica liderança indígena, ele disse que para muitos povos indígenas o mais velho é o mais respeitado, pois é o que possui mais conhecimento e mais habilidade. O índio tradicionalmente não pede nada a Deus, apenas agradece por estar na Terra, com a Natureza bela, o Sol, os animais, etc. Seus valores primordiais são: escutar, perceber, falar e transmitir. Povos indígenas são considerados os mais pobres do mundo. Por quê? Não têm dinheiro? O advogado Ulisses Riedel, que também participou como expositor, disse que na civilização não-indígena as pessoas se sentem sem tempo, trabalhando desesperadamente, alimentando-se mal, assistindo tragédias e traições nas novelas, vendo notícias de violência nos noticiários. Que civilização é essa? Destroem-se florestas para produzir “alimento”! Que alimento? Morticínio do boi? Soja para engorda de animais, e mais morticínio? É importante conhecer o Universo, religar-se com a espiritualidade.

Outra figura emblemática do movimento indígena brasileiro é Alvaro Tukano, que explanou sobre ‘Educação e alteridade’. Doéthiro, seu verdadeiro nome, apresenta diversos aspectos que tornam as culturas indígenas autênticas. Por exemplo, a importância da amizade e da família. Critica a atuação das missões religiosas que enfraquecem a religião e as tradições indígenas. Lembra, ainda, a militância política dos índios espelhados no deputado constituinte xavante Mário Juruna, que lutaram por maior espaço nas instituições brasileiras, inclusive nas universidades, onde o presente curso é uma das conquistas dessa trajetória.

O tema ‘Gestão de Conflitos Interétnicos’ foi abordado pelo professor Euclides Macuxi e pelo sociólogo Elimar Nascimento. Eles disseram que há conflito na diferença de valores, que pode evoluir para um acordo pacífico, ou para uma disputa (guerra, debate, concurso). Cada ator possui os seus interesses (econômico, ambiental, social, religioso, étnico) e recursos (conhecimento, dinheiro, aliados, ferramentas). O processo civilizatório é a expansão da regulação dos conflitos pacificamente, o contrário da barbárie que é a ausência da resolução de conflitos de uma forma pacífica.

‘Natureza, Cultura e Inconsciente Ecológico’ foi explanado pelo sacerdote auití Otyl Bakairi, pelo geólogo Othon Leonardos, e pelo psicólogo Marco Aurélio Bilibio, um mesa arraigada de espiritualidade. Eles defenderam que a natureza está na psique de todos, mas que a civilização urbano-industrial, por se distanciar da religiosidade, desconectou-se, diferentemente das culturas indígenas que mantém este vinculo através de seus mitos. A consciência ecológica é um inconsciente de ligação do ser com o ambiente. O Ecocídio consiste em matar-se a partir da destruição do meio onde se vive. O ser humano, assim como as plantas, também tem raízes, que é sua história, sua cultura. Às vezes é preciso resgatar estas raízes para se ter base, buscando enxergar suas virtudes e patologias, e depois avançar, para atingir a transcendência, a evolução, a iluminação.

O historiador José Pádua, palestrou sobre a temática ‘História Ambiental’, e abordou a interface histórica do meio ambiente, a observação da transformação social e da natureza no tempo, “pois as coisas não são, estão”. Ele expôs que quando o ser humano toma consciência de si, passa a pensar no seu passado-presente-futuro (memória-momento-planejamento), sempre a partir de questões que o incomoda. A História seria uma sobreposição de tempos agindo sobre determinado espaço, simultaneamente. Conhecê-la seria como destrinchar as várias Geografias que vão se sobrepondo. O conhecimento histórico pode ajudar a entender problemas ambientais do presente, por exemplo, para se estudar soluções na Amazônia, é imprescindível se conhecer a História Ambiental da Mata Atlântica.

Uma conversa sobre ‘Memória, Patrimônio e Tradição’ foi estabelecida entre a cientista social Sandra Lima, a educadora Vera Catalão, a antropóloga Mônica Nogueira e a historiadora Joana Euda Munduruku, onde, em resumo, foi apresentada a importância da memória e da tradição no sentido de “caminhar para o futuro nas trilhas dos antepassados” e o fato de que patrimônio imaterial é intangível, mas guardado na memória, transmitido principalmente através da ‘oralidade’ assim são as manifestações culturais, danças, rituais. Para se projetar o futuro é necessário compreender sua origem, por isto a importância da memória. A articulação política dos povos tradicionais também foi abordada, como uma alternativa para o estabelecimento de estratégias para conservação e uso de recursos naturais e de suas relações territoriais, dessa forma é possível o reconhecimento do patrimônio cultural desses povos. No entanto, todo o movimento é arraigado de escolhas, e cada escolha é uma renúncia, para a transformação, assim, sempre haverá perdas tal qual ganhos. Por outro lado, o aumento da participação dos diversos atores envolvidos contribui para que as escolhas sejam mais sábias, pois o sentido da vida para uma pessoa constitui os seus valores, “quando o sentido da vida é ficar rico, a pessoa passará a vida buscando dinheiro, seu principal valor será o dinheiro”.

Os indigenistas Fernado Schiavini e José Meireles, em conjunto com o lingüista xokleng Namblá Gakran, abordaram o tema ‘Olhares sobre o indigenismo’. Nesta mesa foi colocado que se por um lado as sociedades não-indígenas, desenvolvimentistas, vêem a natureza como obstáculo, a terra como privada e o lucro como objetivo; as sociedades tribais, tradicionalistas, vêem a natureza como celeiro, a terra como coletiva, e a produção para ser dividida. As primeiras técnicas de atração pacífica de índios isolados foram desenvolvidas por Rondon, que conseqüentemente possibilitou o avanço de projetos desenvolvimentistas. Esta experiência mostrou que toda a situação de aproximação é malograda, deteriora a cultura e a saúde do povo isolado. Assim, atualmente o que se faz é reservar uma grande área em volta do território núcleo do povo isolado, e monitora-os a distância, evitando o contato. Quando o há, deve ser com paciência, lealdade, entrega e conhecimento. No entanto, essa estratégia de proteção não tem êxito sem um trabalho com o entorno, com ações de saúde, subsistência, regularização fundiária, etc. Uma restruturação no indigenismo de Estado requer a formação de profissionais com sensibilidade indígena nas diversas esferas e instituições, não apenas na FUNAI (Fundação Nacional do Índio).

‘Indigenismo e suas múltiplas dimensões’ foi o tema exposto pela antropóloga Carmem Junqueira. Ela afirma que avareza e falta de solidariedade é pouco comum ou inexistente nas comunidades indígenas, o que há é uma troca comunitária: quem recebe acha que recebeu muito e passa a retribuir também. É uma reciprocidade generalizada, pois quem dá algum presente o faz sem a intenção de receber algo em troca. O trabalho é familiar, onde o velho garante a permanência da continuidade com sua memória, o adulto trabalha e sustenta os pré-produtores (crianças) e os pós-produtores (idosos), e as crianças têm liberdade e aprendizado. Disse que é possível atingir a fartura de duas formas: produzindo muito, ou desejando pouco. E que a pobreza só vai aparecer nas sociedades fisgadas pelo consumo, carentes de saúde e educação, mas não nas comunidades subsistentes.

Por fim, os antropólogos Gustavo Ribeiro e Enyo Barreto tecem comentário a respeito do ‘Indigenismo em contextos latino-americanos’ e lembram que a Constituição Equatoriana remete em seu preâmbulo à Pacha Mamma e a Deus, reconhecendo a sabedoria e ancestralidade de todos e a igualdade de gênero. Em 1971, um encontro latino-americano em Barbados trouxe elementos para a emancipação dos grupos indígenas. Em contrapartida, no Brasil, em 1973, o Estatuto do Índio é publicado, e ainda com o conceito de tutela para a ‘integração’ do indígena à cultura nacional. Ou seja, o mesmo pensamento positivista rondoniano, já esgotado nas ações, continua na legislação. O Diretório Pombalino foi a primeira vez que houve uma política de Estado na América em que a questão indígena foi tratada pacificamente, superada apenas pela de Rondon, cujo posicionamento, na época, era contrastado com o de Von Ihering, diretor do Museu Paulista, que defendia a Imigração Européia e a eliminação do índio.

Nestes termos, é possível comprovar a diversidade de idéias e posicionamentos, que apesar de ter sido colocado aqui no presente texto de uma forma bem resumida, não representando, portanto, o denso e diverso universo de conteúdo (conceitos e propostas) presenciado nas atividades. As idéias aqui apresentadas proporcionaram reflexões sobre a forma de se ver o índio e a questão indígena, no sentido de contribuir para a melhoria de sua qualidade de vida, com respeito e dignidade na sociedade brasileira, e que conseqüentemente também será benéfica ao meio ambiente não só do país, mas de todo o Planeta. Pois de acordo com o pensamento do físico Fritjof Capra, a vida na Terra é uma teia, o que sofrer qualquer integrante dela, será sentido por todos.